Crônica das Origens da Família

Biografias


4.Pedro Phenee Silva

5. Maria Izabel Teixeira Dutra

          Pedro nasceu na Rua dos Guaianases, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, no dia 12 de novembro de 1922, ainda que tenha sido registrado como sendo de 19 do mesmo, filho de Francisco Leôncio da Silva e Alice Pheeney de Camargo. Foi batizado na Igreja de Santa Efigênia a 8 de julho de 1923 por José Octávio da Silva e Eudóxia de Mattos Leme sob o nome de PEDRO MACÉLIO.

foto da década de 40          Perdeu o pai muito cedo, quando sua atenção ainda era dedicada apenas aos estudos e às "peladas" que jogava com frequência nos campos vizinhos de sua casa. Com a morte do pai, a vida em casa sofreu um reajuste forçado: para auxiliar a mãe na educação de Pedro, Francisco (filho de Alice e irmão do Pedrinho) deixou o Seminário em que estudava. Coincidência ou obra divina, Pedro recompensou esse sacrifício abrigando, anos mais tarde, o último suspiro do irmão em sua casa, no bairro do Jardim Paulista.

          Ele era canhoto, mas acredita-se que sua mãe tinha forçado a destra, pois algumas atividades (tais como lançar objetos ou chutar bolas) ele o fazia com a esquerda. Entretanto, escrevia com a mão direita.

          Pedro sempre foi aficcionado do cinema. Conhecia a todos os artistas das telas e todas as películas da época. Para custear esse "hobby", cobrava de "Mina", a segundo esposa do seu avô, alguns tostões como remuneração sempre que ela lhe pedia um favor. Assim quando ela, com a vista fraca, chamava Pedrinho para enfiar a linha na agulha para suas costuras, já sabia que isso iria custar-lhe algum.

          "Mina" tinha um baú de madeira, onde guardava seu dinheiro. Vez por outra percorria a casa falando aflita "meine Schlussel, meine Schlussel..." (minha chave, minha chave...). Não é difícil perceber que nessas horas Pedrinho havia "aliviado" a chave do baú para conseguir alguns tostões a mais para balas, bolinhas de gude etc.

          Como forma de assegurar a educação dos filhos se lhes faltassem os pais, Alice dava os filhos para senhoras ricas batizá-los. A Dona Eudóxia de Mattos Leme coube batizar o Pedrinho. Dela, o titular lembra que num de seus aniversários a mãe o levou para visitá-la. Por ser rica a madrinha, Pedro contava ganhar uma bicicleta de presente. Mas Eudóxia lhe deu mil e trezentos réis quando o aluguel de uma bicicleta por uma hora custava mil e quinhentos réis. Dizem que Alice saiu mais decepcionada que o filho da casa da comadre. Pedro fez o grupo escolar e entrou para o ginásio das Perdizes. De lá foi para o Ginásio São Paulo.

          Mas, faltando o pulso firme do pai, Pedro crescia quase sem controle. Em 1934 o irmão mais velho levou-o a Jaú. Sem que Pedrinho esperasse, se viu só, longe dos parentes e internado no Ginásio Municipal de Jaú, dos Primostatenses. Esta "traição" do mano parece ter calado fundo no garoto, tanto que Pedro sempre reclamou disse e dizia ter com muitos conhecidos, mas poucos amigos. Com pena, Dona Alice tirou-o de lá no ano seguinte. Talvez a memória dela ainda registrasse o que houvera com sua madastra. E nesse ano (1935), Pedro foi empregado como atendente no escritório de advocacia do Dr. Osvaldo de Brito, com um salário de trinta mil réis mensais. Pouco depois, foi entregador na Schilling, Huller & Cia. durante cerca de quatro meses. Em 1938, na inauguração do Cine Metro (que estreiou com a fita "Melodia na Broadway"), colocou-se com o salário de 75 mil réis por semana. Mas pouco tempo (dois meses) ficou neste emprego. Começou, então, sua vida como bancário. Esteve no Banco de São Paulo (1940-41), no Banco da América, no Banco Mercantil de São Paulo e no Banco Português do Brasil (hoje incorporado ao grupo UNIBANCO). Quando trabalhava no Banco Português, seu irmão Antonio conheceu um Sr. Horácio, dono de uma firma de propagandas em rodovias. Horácio procurava alguém de confiança para caixa executivo, oferecendo um salário de 2.500 réis (o dobro do que Pedro ganhava no banco). Aceitou e foi trabalhar no Rio de Janeiro. Cerca de um mês depois, tendo um parente desempregado, Horácio chamou Pedro e comunicou-lhe que breve teria de despedí-lo. Como a polícia carioca só aceitava como documento a carteira de trabalho, Pedro pediu seu registro. Horácio "cochilou" e assinou a dita carteira. Com ela, Pedro exigiu dois salários pela demissão. Consultado o advogado da firma, o patrão teve de pagá-los. Isto foi em princípio de 1945.

          Em 1946 a serviço do UNRRA - União Nacional de Reabilitação e Reconstrução Aliada, programa das Nações Unidas do qual o Brasil fazia parte, Pedro teve a oportunidade de visitar diversos países, como Estados Unidos, Trinidad-Tobago, Itália, Iugoslávia, Grécia e Ilhas Canárias, viajando de navio e de hidroavião.

          Na volta, trabalhou no Banco do Comércio e Indústria de Minas Gerais (1949), sendo transferido para Campos a pedido. De lá, novamente por sua solicitação, voltou a São Paulo. No dia 17 de abril de 1950 ingressou no Banco do Estado de São Paulo, indicado de seu irmão João Pheeney.

foto da década de 40          Fato importante ocorrera com ele alguns anos antes. Em 1945, quando o pe. Pheeney voltava da guerra, a família foi esperá-lo no porto do Rio de Janeiro. Hospedaram-se numa das pensões do Rio, onde morava a jovem Maria Izabel, estudante da Faculdade Santa Úrsula, na capital da República.

          Pedro foi acompanhar Maria Izabel até a Estação Leopoldina, eis que ela estava indo em férias para sua terra. Era 13 de julho de 1945.aneiro Não mais a teria visto se o padre tivesse chegado naquele dia. Ocorre que o navio atrasou e a família Silva teve de voltar ao Rio alguns dias mais tarde. Desta feita, Maria Izabel aceitou a côrte do paulista ("botocudos de São Paulo" era seu conceito inicial sobre os Silva, como nos declarou há poucos anos).

          Maria Izabel nasceu a 13 de maio de 1923, filha de Alberto Antonio Teixeira Dutra e Maria Pereira. Viveu em Campos, onde estudou até 1936 no Externato Imaculada Conceição com a insígne mestra campista Maria Benedita de Jesus Gouveia. Finda esta fase de sua vida escolar, ingressou com a terceira melhor média no "Liceu de Humanidade de Campos", sempre se destacando por seus conhecimentos do vernáculo. Terminou o ginásio em 1941, último ano em que esta fase teve duração quinquenal. Iniciou o curso clássico (hoje extinto, tal como ocorreu com o científico; englobados que foram pelo segundo grau), porém não o concluiu pois em 1944 foi prestar vestibular no Rio de Janeiro. Principiou o curso de Letras Clássicas na Faculdade de Ciências e Letras do Instituto de Santa Úrsula. Atendendo a sugestão de seu professor catedrático de Latim, e depois padrinho de casamento, Dr. Jerônimo Ribeiro, transferiu-se para a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Sua formatura foi noticiada no jornal carioca "A Manhã", em edição de 23 de dezembro de 1947, página 5, nos seguintes termos:

          "Com invulgar brilhantismo, colou grau, ontem, pe la Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, a senhorinha Maria Izabel T. Dutra, filha do casal Alberto Antonio T. Dutra - Ma P. T. Dutra, da sociedade de Campos." Formada, Maria Izabel voltou a Campos, onde lecionou grego e latim no primeiro curso clássico noturno do Liceu. Seus alunos eram antigos colegas que não tiveram oportunidade, por exercerem profissões diuturnamente, de completar o programa do curso. A propósito, todas as professoras do período noturno do Liceu nesta ocasião eram antigas colegas dos alunos. E isso trazia a curiosa situação de ex-colegas tratando-se por "o senhor", "a senhora". A propósito, esse tratamento era voluntário e apenas uma das professoras o exigiu. Era a única tratada por "você", por picardia dos alunos e ex-colegas.

          Pedro e Maria Izabel se casaram em Campos, na Igreja de N. S. do Carmo, realizando juntos os atos civil e religioso, no dia 5 de janeiro de 1949, às oito horas da noite. Ela acresceu ao nome os sobrenomes Phenee Silva do marido.

          Assim que se casaram foram para São Paulo, mas Maria Izabel não se adaptou de início à nova terra, seus usos e costumes. Educada como moça de família de projeção social e renome numa pequena, ainda que orgulhosa, cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro, Maria Izabel contava com criadas para as tarefas domésticas. Sequer sabia cozinhar, quando se casou. E saber cozinhar era considerado na ocasião um atributo fundamental para o casamento. Também, como consequência do orgulho da abastança dos campistas, Maria Izabel não conhecera provações de qualquer ordem. Isto lhe foi maléfico quando se mudou para a terra de Pedro. Era costume trazido pelos imigrantes um alto senso de economia. Por esse motivo, na casa de Alice, onde foram morar, quando era servido margarina no café o queijo ficava guardado. Se havia bife, cada um recebia um único, e assim por diante.

          Além do mais, por ser uma das poucas mulheres na casa, Alice exigia contribuição dela na hora de lavar e passar as roupas do pessoal da casa, apesar de Pedro pagar à mãe pelo uso de um dos quartos da casa.

          Nada disso Maria Izabel estava acostumada a fazer na casa dos pais.

          Sentindo profundamente a mudança, arrumou suas coisas e voltou para Campos.

          Um mês depois Pedro também chega a Campos. Ela havia reassumido o magistério e ele obteve sua transferência para a agência do Banco do Comércio e Indústria de Minas Gerais em Campos. Mas Pedro não se adaptou também a Campos e a 5 de setembro de 1949 o casal retornou definitivamente a São Paulo. Eles reiniciaram sua vida em um quarto alugado, vizinho à casa de Alice. Após a morte dela, foram para uma casa no atual bairro de S. Judas, na Rua Massaranduba. Aí residiram por três anos e meio.

          Não raro Pedro varava noites jogando sinuca, para desespero de Maria Izabel, que esperava por ele até raiar o dia. E, quando amanhecia, o trabalho caseiro não permitia a ela dormir. E ele seguia também direto para o banco. Com o treinamento, logo Pedro se tornou um ás nesse jogo, sendo quase imbatível nele.

          Várias vezes o leite dos filhos saía das mesas de jogo.

          Em 1955 mudaram-se para um apartamento que Pedro comprou, através do IAPB (Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Bancários, hoje absorvido pelo INPS), situado no bairro do Jardim Paulista, à beira da Av. 9 de julho.

          Pedro, que em 1950 entrou para o quadro de funcionários do Banco do Estado de São Paulo, estabilizou assim sua vida profissional, poucas vezes apelando para outras atividades extrabanco. Lembramo-nos apenas de ter trabalhado numa firma de embalagens, de nome EMPAX, em Santo Amaro. Curioso comportamento, Pedro gostava muito de dormir (chegou a fazê-lo numa ocasião, por 56 horas consecutivas), mas também trabalhava demais. Anos e anos a fio ele passava noites em horas extraordinárias de trabalho no BANESPA. Lembramo-nos de várias vêzes termos separado vias de documento para ele. Apesar disso, gostava de passar por preguiçoso. Exemplo foi o diálogo ocorrido entre ele e o diretor de administração do BANESPA, quando Pedro se aposentou:

Diretor (polido): "Seu Pedro, o que o senhor vai fazer daqui em diante ?"
Pedro (confidente): "O que sempre fiz no BANESPA: NADA".

          O homem o olhou com evidentes sinais de espanto.

foto da década de 70

          Maria Izabel, que se mantivera afastada do magistério desde que abandonou o Liceu em 1949, voltou a ele no ano de 1965, no ginásio estadual "Ministro Costa Manso". Entretanto no ano seguinte, por deslealdade do diretor daquele ginásio, foi dispensada em favor de um apaniguado dele. Sentindo-se decepcionada e injustiçada, ficou afastada do magistério por mais três anos. Nessa época fez um dos seus mais destacados trabalhos intelectuais: a tradução das orações em grego (prenhes de abreviaturas) existentes na antimensa que mostramos adiante. A tarefa foi realizada para a páscoa dos militares coordenada pelo pe. Pheeney e rendeu a ela agradecimentos pessoais do bispo de São Paulo.

          Todavia, para melhorar a renda familiar, precisou voltar a lecionar.

          Conseguiu lugar, em 1968, na extensão do ginásio estadual "Dr. Carlos Augusto de Freitas Villalva Jr.", que depois se tornou autônomo com o nome de "Ginásio Estadual do Bairro de Indianópolis" e que hoje se denomina "Ginásio Estadual Dr. Ângelo Mendes de Almeida". Nele, sempre estimada pela Diretoria e colegas, foi Presidenta da Associação de Pais e Mestres por três anos. A consideração dos colegas era tanta que sempre ela era procurada para opinar, mesmo sobre tópicos específicos de outras disciplinas que não Língua Portuguesa. Muitos a chamavam de "Enciclopédia Ambulante", meio na troça, em respeito à sua sólida cultura geral.

          No período em que esteve afastada do magistério, Maria Izabel foi convidada para Assistente do titular da cadeira de grego na Faculdade de Letras da USP. Pedro, no entanto, se opôs achando a USP em lugar ermo e distante e Maria Izabel se viu obrigada a declinar do convite.

          Pedro sofreu muito com os dentes, até decidir-se por substituí-los por uma dentadura. Certa feita, o neto André tomava banho e brincava na banheira da casa dos avós e viu a dentadura do avô num copo dágua. Não resistiu e comentou para a avó, que lhe dava banho: "Olha! os dentes do vovô estão rindo pra mim..."

          Teve também uma doença nos cabelos e quis tratá-lo com criolina (um desinfentante forte). O remédio não deu resultado e ele sempre viveu com coceira e caspas no couro cabeludo. Tinha horror a médico, porém nos anos 60 foi operado de hemorróidas no Hospital da Beneficência Portuguesa. Em 1984, com duas hérnias do tamanho de laranjas, enfrentou novamente o bisturi.

foto da década de 70, com o neto ANdré          Não passava um dia sem ingerir algum medicamento. Os filhos brincavam perguntando nas refeições se ele queria suco de Cafiaspirina ou de Melhoral. Reclamava demais de aerofagia e de falta de ar. Porém fumava mais de dois maços de cigarros por dia. No início usava a marca Lincoln (hoje inexistente), sem filtro. Depois passou para Hollywood e Minister. Não aguentava qualquer esforço físico. O Natal de 1985, por exemplo, foi passado na chácara do filho Guto. A casa fica na parte baixa da encosta de um morro. Na volta Pedro teve de subir as escadas (não mais 100 degraus) por etapas.

          O casal era complementar. Pedro geralmente casmurro e Maria Izabel sempre alegre e comunicativa. Dois episódios conferem um contorno adequado a eles. Certa ocasião estávamos indo ao acampamento onde Pedro tinha o seu "trailler" estacionado. Em certo ponto deveria ser feito um contorno. Acontece que muito mais no jeito existia um acesso proibido. Travou-se, então, o seguinte diálogo entre o casal:

Pedro: "Vamos por aqui (apontando o acesso irregular) ou é melhor darmos a volta?
Izabel: "É melhor ir pelo lugar certo"
Pedro: "Mas são 5 quilômetros a mais..."
Izabel: "Então vamos por aqui..."
Pedro: "E se o guarda pegar, você paga a multa ?"

          Maria Izabel era baixinha e pesava mais de cem quilos. Quando os filhos chamavam-na de gorda ou baixinha, invariavelmente respondia com humor: "Baixinha (ou gorda) é a mãe !

          Quando ela teve infarte em princípios de 1986, pensava-se que iria partir logo. Todavia, o tabaco levou Pedro antes. Segundo Beto, filho do casal, Maria Izabel tinha ido ao Rio visitar a mãe. Pedro e Beto ficaram ouvindo música e conversando até altas horas da noite. Nessa madrugada de 23 de junho de 1986 Pedro passou do sono à eternidade. Exatamente como o irmão Chico e na mesma cama onde ele morrera, Pedro expirou dormindo.

          Maria Izabel tinha enorme volúpia para comer. Após o infarte, teve de parar de fumar. Isso não foi grande esforço porque consumia poucos cigarros. Mas reduzir seus 105 quilos, preparando-se para a hipótese de uma operação cirúrgica, foi uma batalha vã. Apesar de admoestada pelos filhos, ela parecia orgulhar-se de comer e desobedecer aos médicos. No último dia que a vimos em São Paulo, ela pegou um iogurte e nele colocou duas colheres de sopa de acúcar.

          Quando lhe criticamos, ela sorrindo dizia "nhã-nhã", saboreando o doce.

          Dormia tarde e acordava cedo a vida inteira. Por isso, quando se sentava para ver televisão logo caía no sono. Numa das últimas imagens que dela se guarda, ela dormia no sofá e sobre ela dormia seu neto Paulo Adriano.

          Quando Pedro se foi, Maria Izabel trouxe a mãe para morar com ela.

          Na madrugada de 17 de julho de 1987 Maria Izabel chamou os filhos Beto e Tarso e disse sentir dores no peito. Vestiram-se rapidamente e foram para o hospital. Porém já no limiar da porta da casa ela "travou", não conseguindo andar. Puseram-na rapidamente sobre uma cadeira e ela foi levada desse modo para o carro. Ao chegar no hospital, não durou mais que dois ou três minutos.