CADERNOS DE VIAGEM
AMÉRICA DO NORTE - Estados Unidos - Tennessee
Memphis
De Nova Orleans fomos de trem para Memphis.
No meio do caminho o trem pára na estação de Hazelburg, cidade onde nasceu Robert Johnson, um dos primeiros gênios do blues (autor de "Love in Vain", gravado pelos Rolling Stones).
O trem chegou em Memphis à 11h 30min da noite e é o único trem de passageiros que pára lá. A estação fica num bairro pobre, escuro e assustador, mesmo durante o dia. Lembra os filmes sobre comércio de drogas nos bairros negros americanos. Quando conseguimos um táxi para ir à cata de hotel, tivemos contato com o pior sotaque branco dentre os que conhecemos nos Estados Unidos. Eles falam meio acariocado, com os esses sibilantes (mish ao invés de miss, por exemplo) e com um ovo na boca.
Memphis também fica às margens do Mississipi, tendo do outro lado do rio uma cidade de mesmo nome, no estado do Arkansas (leia Arcançá). Ela fica a poucos quilômetros ao norte da divisa com o estado do Mississipi. Dá para passear tranquilo pelas ruas da cidade, embora tivéssemos visto muito pouca gente andando à pé.
Estivemos na Sun Records, uma gravadora do tamanho de uma sala de estar num edifício de classe média, mas que teve a sorte de lançar nada menos que Elvis Presley, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Carl Perkins, Roy Orbison, B. B. King etc. Pode-se dizer que nela nasceu o rock'n'roll.
Na foto, Jerry Lee Lewis (loiro à esquerda), Carl Perkins (no centro), Elvis Presley sentado e um outro músico ao fundo.
Fomos conhecer a modesta casa de madeira em que morava o "Pai do Blues", o maestro negro W. C. Handy, autor do primeiro blues gravado (St. Louis Blues) em 1909, hoje transformada em museu. Na época, ela certamente ficava no bairro negro da cidade.
Perto desse museu fica a Beale Street, centro da boêmia local, onde estava situado o barzinho Pee Wee, parada quase obrigatória para os músicos que iam e vinham de Nova Orleans a Chicago e vice-versa. Ali eles tocavam para conseguir algum dinheiro e seguir viagem.
Segundo pudemos perceber, os negros são muito valorizados em Memphis: em vários locais há placas nas paredes se referindo a pioneiros negros em diversas áreas. Aqui uma informa o local em que vivia o primeiro negro a ser dono de banco. Ali, onde morava o primeiro negro a ter uma escola. Adiante, a casa do primeiro negro a ser deputado ...
O povo é meio gozador: um gaiato colocou uma placa na parede de sua casa dizendo "Neste local, no dia 11 de novembro de 1812, nada aconteceu". Certa vez passou por mim um ônibus de turistas. No letreiro se lia I'M LOST (estou perdido).
Há em Memphis dois interessantes museus. Um deles, patrocinado pela Brazilia Flowers, é o museu do blues chamado Memphis Rock'n'Soul Museum. Não é grande em tamanho, contudo é fenomenal pelo acervo. Há nele velhíssimas rabecas, violas e outros instrumentos feitos pelos escravos com caixas de charutos e fios de aço grosso. Alguns dos instrumentos pertenceram a cobrões do blues ou do jazz Estão expostas centenas de capas de discos gravados pelos mais famosos bluemen. Há várias vitrines à prova de som, com aparelhos de telefone pendurados. Quando você põe um no ouvido, ouve músicas do blueman ou roqueiro que está mostrado à sua frente. Há filmes de 1927 e 1929 mostrando jug bands (conjuntos que apareciam nos desenhos muito antigos, onde crioulos de lábios muito grossos e fala arrastada faziam o baixo das músicas soprando em garrafões vazios). Há o único filme gravado por Bessie Smith (Saint Louis Blues, 1929).
O outro museu interessante fica na Mud Island, no rio Mississipi. A Mud Island é separada da terra firme por um braço do rio chamado Gayoso Bayou. Chega-se à ilha por uma passarela de pedestres ou por um bondinho pendurado na parte inferior dessa passarela. Embora o trajeto seja curto, a viagem de bondinho impressiona porque ele passa raspando ao concreto da ponte e por entre os vãos de sustentação. Ele tem janelas panorâmicas e anda a uma altura aproximada de um prédio de 8 a 10 andares por sobre o Gayoso Bayou.
Nosso caminho pelo Museu do Mississipi começou numa sala mostrando o ambiente e os artigos domésticos e de trabalho dos primeiros grupos que viveram no vale do Mississipi: os índios e os caçadores de peles espanhóis e franceses. Um salão contíguo mostra modelos de madeira dos principais tipos de navios fabricados para navegar no Mississipi. Adiante, salas com fotos e filmes de tragédias relacionadas com o rio (inundações, explosão de caldeiras das barcaças etc.). A seguir, uma sala de personalidades lendárias no Mississipi: um capitão de barcaça, um jogador de cartas, um faroleiro, um casal de artistas que se exibiam nas barcaças etc. A propósito, uma placa explicativa dizia ser o jogo tolerado, a menos que algum passageiro reclamasse. Nessa hora, o jogador era sumariamente atirado ao rio. Uma outra sala mostra uma réplica exata de um desses navios, com cabine de comando no andar superior, salões e quartos e no de baixo e área de serviços (casa de máquinas e depósitos de mercadorias e bagagens) no porão. Os salões são luxuosíssimos: atapetados, com lustres de cristal, mesas chiquérrimas, sofás e poltronas que deviam ser o que de melhor era então produzido. No depósito se vê a madeira para lenha das caldeiras, sacos de cereais para consumo da cozinha do navio ou para ser comercializado na cidades marginais. O navio está num pavilhão negro e sobre uma lâmina de água, cujas marolas provocam a sensação de uma viagem noturna pelo rio.
Sobe-se à seção seguinte do museu: o das batalhas navais. Passa-se primeiro por dentro de uma dessas naus. Barulhos e clarões súbitos simulam com realidade impressionante uma cena de batalha naval.
eguimos por um corredor que termina na réplica de um forte às margens do rio. Se antes se tinha a ótica dos soldados no navio, daqui se vê a batalha sob o ponto de vista dos soldados do forte. Os navios "lá em baixo" se iluminam como se de fato estivessem atirando. "Aqui em cima", os canhões "respondem" ao fogo. Nesse corredor que vai do navio ao forte há mostruários de fotos, uniformes, armas e apetrechos da época da Guerra Civil.
Dessa balbúrdia se passa à seção de música, mostrando o que nasceu no vale do Mississipi: jazz, ragtime, blues e rock'n'roll. Uma sala para cada uma das correntes. A inicial tem nas paredes umas placas que parecem ser de acrílico chapiscado. À medida em que você anda, uma parte dessas placa vai se "acendendo" (simplesmente pelo reflexo das luzes no teto) e a parte anterior se "apaga". Mais alguns passos e o que você está vendo se "apaga", aparecendo a parte seguinte. Cada uma dessas partes mostra uma cena da vida rural nas fazendas, geralmente relativas a negros escravos trabalhando, tocando, dançando, conversando. Ali se refere aos primeiros negros artistas (Robert Johnson e o mulato Charlie Patton). Adiante uma réplica precisa do Pee Wee, a famosa gafieira de Memphis. Nessa parede se pintou o piano, bar, cadeiras, mesas etc. A parede reproduz uma cena quotidiana do local. Num certo ponto há um crioulo de costas, diante de uma janela pintada na parede. Na vidraça dessa janela se vê o reflexo do homem: era W. C. Handy.
Cada sala tem mostruários das coisas relativas aos artistas daquele gênero (partituras, instrumentos, documentos ...) e telas que mostram filmes curta-metragem sobre o gênero e seus maiores expoentes. De tempos em tempos, os filmes recomeçam automaticamente.
Achamos que uma visita a esse museu é quase obrigatória para se conhecer sobre o modo de vida do vale do blues. Ele é completo e muitíssimo instrutivo.
Nessa ilha fica uma também uma réplica fiel do rio Mississipi, a céu aberto. Um veio de água corre por uma canaleta de cerca de 1,5 quilômetros de extensão, pelo centro da ilha. A canaleta vai imitando cada curva do rio e de seus afluentes. A profundidade e o volume de água do rego são proporcionais às dos rios e lagos que formam a bacia hidrográfica do Mississipi, desde sua nascente no lago de Itasca (a noroeste de Minnesota) até seu fim no Golfo do México (representado por uma enorme piscina). São também representados os bayous e as cidades ribeirinhas (nas maiores cidades, uma placa indica seu traçado urbanístico). Percorremos a ilha em companhia de uma conterrânea que lá passava férias em casa de um casal de americanos amigos dela.
Depois de conhecer a ilha, fui dar uma volta de barcaça pelo Mississipi, numa viagem de hora e meia. A todo tempo passavam rebocadores empurrando 50 ou 60 batelões carregados de pedras, areia, carvão e toda sorte de carga. Esses barquinhos têm o motor tão forte que produzem ondas de quase três metros de altura. O capitão da nossa barcaça fez uma "barberagem" e navegava emparelhado a um desses rebocadores quando se deu conta que tinha de voltar ao porto de partida, no Gayoso Bayou. Numa manobra rápida, cruzou por trás de rebocador. Resultado: aquela barcaça pesada deu um salto quando passou pelas ondas provocadas pelo rebocador e, ao desembarcar, eu vi o convés todo alagado pela água que entrou nesse salto. A maioria do pessoal que ficou lá em baixo para fugir do sol (e ficar mais perto da lanchonete) acabou todo molhado.
Do cais visitei a famosa pirâmide de alumínio que fica à beira do rio e serve de estádio de jogos e de salão de exposições. Na entrada dela a calçada é feita de tijolos com os nomes dos colaboradores que ajudaram a custeá-la.
Ali perto fica a primeira igreja de Memphis, ereta em 1828 onde hoje é o Pepper (...). A congregação se resumia ao pastor e três membros.
Na Front St. se localiza o parque onde havia um forte que guardava o Mississipi no século passado. Seus canhões ainda estão lá.
Perto da estação do AMTRAK vimos o motel onde assassinaram Martin Luther King. Ele hoje é Museu dos Direitos Civis. Um novo lance foi construído nele, modificando o aspecto original. À frente do quarto onde ele estava hospedado ainda conservam um carro igual ao que o esperava para seguir viagem no dia em que ele foi morto. Seu corpo repousa num mausoléu em Atlanta (Georgia).
É muito visitada em Memphis a Graceland, casa onde viveu e morreu Elvis Presley, o ídolo local até hoje. Nos subúrbios da cidade fica o museu dos índios Chucalissa, onde dizem haver uma aldeia conservada no estado natural.
Segue Chicago ...
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