Seguimos para Saint Louis. O hotel ficava onde Judas perdeu as botas (a mais de 14 km do centro da cidade), num bairro residencial muito elegante, de casas de tijolo ou madeira pintada e gramados arrumadinhos. Na maioria dos gramados havia imagens de santo, ao invés dos tradicionais anões de jardim. Em algumas portas havia chapéus (como os de moças caipiras nas festas juninas) pendurados nas portas. Nenhuma criança brincando nos jardins. É tudo muito organizadinho, mas frio e impessoal.
Um táxi nos deixou na antiga catedral de Saint Louis, hoje totalmente reconstruída e que não guarda nada da original, erguida no começo do século passado. A poucos metros dali fica o famoso Gateway Arch, o arco enorme projetado por um arquiteto escandinavo para homenagear o fato de Saint Louis ter sido a porta de entrada para a colonização do oeste americano. É um arco de 192 metros de altura (a altura de um edifício de 50 andares, mais ou menos). Revestido de alumínio, dá a sensação de ser bem leve. Visitamos o museu que está no subsolo dele: Museu da Expansão para o Oeste. No teto, faixas semicirculares indicam as décadas, de modo que se pode ter uma idéia de que época é o acervo mostrado entre as faixas indicativas do período. Ademais, ele é dividido em setores, como fatias de pizzas, por assuntos: pioneiros, soldados, índios e exploradores (mineradores, caçadores de peles etc). Em cada setor se pode ver cenas e apetrechos típicos deles. Há o carroção (covered wagon), o búfalo, os uniformes dos soldados, os tepees (aquelas casas cônicas dos índios).
Nas paredes placas de acrílico marrom com informações, frases célebre ou curiosidades. Numa conta que um vaqueiro bêbado entrou num trem e o cobrador perguntou para onde ele iria. O caubói, mal-humorado, respondeu: "vou para o inferno" (em bom português isso seria melhor traduzido como "vou para a pqp"). "Tá legal - disse o cobrador - me dê 2,50 dólares e desembarque em Dodge City".
No fundo do museu há uma sala dedicada ao Oregon Trail, a trilha que os pioneiros seguiram entre 1840 e 1860 rumo às terras-de-ninguém (índio não era gente para os pioneiros). Essa trilha saía de Saint Joseph ou Independence, cruzavam as pradarias cheias de búfalos do Kansas, as terras áridas do Nebraska, Wyoming e Idaho (onde cruzavam as serras cheias de neve das Montanhas Rochosas) até alcançar o Oregon.
Nesse museu são exibidos trechos de cartas dos pioneiros dando conta das coisas do cotidiano. Por meio delas se traça o humor, os temores, as esperanças dos viajantes. Noticia-se as mortes, os encontros com índios e soldados, os contratempos de viagem (perda de animais, quebra de veículos etc). Duas coisas ficaram claras para nós, cujo conhecimento sobre o Oeste americano vem das películas de Hollywood: em primeiro lugar, que os assaltos dos índios sobre as caravanas de pioneiros eram raros. Das cerca de 300 mil pessoas que participaram da travessia, entre 1840 e 1860, cerca de 10% morreu na viagem, porém apenas 362 em decorrência de luta com índios. A maioria morreu de acidentes ou doenças. Ao contrário, sabendo que os brancos não iam ocupar as terras, mas apenas passar por elas sem grandes estragos (salvo um ou outro búfalo abatido), os índios até muitas vezes auxiliavam a travessia para se verem livres dos brancos o mais rápido possível. Em troca, recebiam ferramentas e utensílios.
Em segundo lugar, os pioneiros preferiam bois a cavalos para puxar as carroças. Vários eram os motivos: os bois, apesar de muito mais lentos, eram mais fortes e mais baratos e, em caso de necessidade, poderiam se transformar em víveres. Assim se esvai outro mito de Hollywood: os carroções eram postos em círculos à noite para encurralarem os bois e evitar perda de tempo em juntá-los pela manhã, na hora da partida. Nada tinha a ver com proteção contra ataques indígenas. Acredito que os ataques passaram a se tornar mais frequentes à medida em que o número de caravanas e o número de participantes passaram a perturbar os índios e espantar os bisões das pradarias.
Explorado o museu, compramos ingressos para subir ao topo do arco. Chega-se lá em cima em interessantes bondinhos com o formato de um ovo e onde cabem, apertadas, cinco pessoas sentadas. A entrada desses "ovinhos" é por uma portinhola na parede. Fechadas a porta externa (a da parede) e a interna (a do ovinho), ele começa a subir como um minúsculo elevador ou roda gigante. Ele balança e dá soquinhos. De dentro dele só se vê a escada interna do arco (talvez para emergências e manutenção) e as estruturas de ferro. Dá um pouco de medo que aquele treco caia. No alto a vista é obviamente bonita. Dali se pode ver a confluência dos rios Missouri e Mississipi.
É claro que fomos navegar pelo Mississipi, uma das nossas paixões, a bordo da barcaça Huck Finn (muitas das coisas em St. Louis fazem referência a Mark Twain, um de seus filhos mais ilustres). O passeio que custa US$ 7,00 por pessoa, mas a barcaça é falsa como nota de 20 reais. Movida a motor, a roda atrás dela mal se movia com a passagem da água. Parece que hoje só há três sternwheelers originais em operação: dois em Nova Orleans e um em Sacramento, Califórnia.
Choveu bastante durante a viagem (a chuva prenunciou a mega-enchente que dias depois iria se abater sobre a região, provocando a enchente recorde que encheu de água as cidades ribeirinhas). O rio parece ser um pouquinho mais estreito que em Memphis e Nova Orleans. Ele está muito barrento e cheio de troncos, talvez trazidos pelas chuvas que caíam no estado de Minnesotta. O barco navegou cerca de uma hora e não se afastou muito do centro (não foi muito além da Eads Bridge e voltou até a outra ponte, de nome Martin Luther King). Eu esperava que ele fosse até perto da confluência do Mississipi com o Missouri, a alguns quilômetros acima, perto da cidade de Charles.
Às margens do rio (no lugar chamado The Levee, ou A Barricada) estão estacionados permanentemente o barco-restaurante Lt. Robert E. Lee e o barco-lanchonete do McDonald´s. O Robert Lee é homenagem a esse engenheiro que "bolou" um canal no rio para permitir navegação. Na outra margem (já no Estado de Illinois) há dois enormes barcos-cassinos, para 2.000 pessoas cada um. É curioso: o jogo é liberado em Illinois e proibido no Missouri. Basta atravessar a ponte ...
Nessa viagem o guia contou o porquê do pseudônimo de Samuel Clemens, que vivia em Hannibal, ao norte de Charles (onde os rios Mississipi e Missouri se cruzam). Como estão sempre ameaçados com enchentes, os ribeirinhos construíram nas margens dos rios marcos de pedra com traços indicando o nível dos rios. Até o marco n° 2 (mark two) o rio é seguro. Disso Samuel Clemens tirou seu Mark Twain.
Do Arco fomos conhecer a cidade. Ela não é tão glamorosa quanto Memphis ou Nova Orleans e nem explora tanto os atrativos do rio. Há uns prédios bonitos, mas nada exuberante.
Entramos na Old Court House (Antigo Palácio da Justiça, numa tradução livre). O que aparenta ser apenas mais um prédio antigo é, na verdade, um edifício com um valor histórico tremendo, pois nele se realizou um julgamento muito importante na história americana. Havia um tratado conhecido como Compromisso do Missouri, assinado entre vários Estados americanos, reconhecendo a liberdade dos negros que viessem livres de Estados onde a escravidão já tivesse sido abolida. Em Saint Louis, um crioulo de nome Dred Scott e sua mulher Harriet solicitaram o reconhecimento da liberdade deles com base nesse tratado, mostrando que haviam trabalhado para Taliaferro, um agente índio do forte Armstrong (que ficava em Illinois, onde não havia mais a escravatura). Esse forte foi sucedido pelo forte Suelling, onde Dred também havia trabalhado. Apesar do tratado, o governo do Missouri não aceitou a petição e os crioulos recorreram à Suprema Corte. A Corte, temendo que o tratado provocasse o alastramento do fim da escravidão para outros estados, declarou o Compromisso do Missouri inconstitucional e devolveu Dred Scott à escravidão. A mulher dele continuou a luta mesmo depois de viúva, até conseguir ter seu direito reconhecido.
Da Old Court House estivemos no Laclede´s Landing, o bairro boêmio que tornou St.Louis conhecida como uma das capitais do blues e do ragtime na época dourada da navegação pelo Mississipi, quando os bens vinham das indústrias do leste e atravessavam o rio, sendo estocadas para suprirem as demandas daqueles que iam para o Oeste bravio. Em passado recente, a criminalidade no local cresceu muito e o bairro quase foi transformado num gueto. Hoje, mais policiado e urbanizado, é o centro de espetáculos da cidade, uma espécie de Broadway local. Quase todos os nightclubs e casas de shows estão na Laclede´s Landing. Mas o lugar ainda é muito assustador, principalmente à noite, pois lembra uma zona portuária, com prédios velhos e de aparência decadente. A propósito, Pierre (de) la Clede foi um comerciante francês de peles de castor, pioneiro no povoamento de Saint Louis.
No centro da cidade fica uma antiga estação de trem da cidade, a graciosa Union Station, hoje remodelada e abrigando um pequeno, mas moderno, shopping-center.
Ainda no centro, visitamos a casa-museu onde morou Scott Joplin, o papa do ragtime. Nela há inúmeras partituras e objetos dele (piano, saxofone ...). Mas é um museu pouco frequentado e o zelador não soube dizer muito sobre a vida de Joplin.
Visitamos também a casa em que viveu o irlandês Campbell. Ele ficou riquíssimo em meados do século passado como comerciante de peles. Era uma casa de três andares muito luxuosa, com quartos grandes e separados, quarto de brinquedos, vasos sanitários de porcelana (na St. Louis da metade do século passado!) etc. A dona e guia estava doida para nos enxotar o mais rápido possível e foi mostrando os cômodos às carreiras.
O pessoal por aqui deve beber um bocado, pois há muitas cervejarias e fábricas de vinho.
Perguntei no hotel sobre um outro filho famoso da cidade: Chuck Berry, mas as pessoas não esticaram muito o assunto. Ele é meio que uma ovelha negra da família, principalmente depois de se envolver com roubo e ter ficado preso por um tempo.
Segue Kansas City ...
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